Para entender a obra
de Gregório de Matos é preciso conhecer o contexto histórico no qual ele está
inserido, uma vez que grande parte de sua poesia (principalmente a satírica)
faz alusão a duas de suas maiores referências: o Brasil e Portugal. No final do século XVII, Portugal estava em
decadência, sendo que o sistema escravocrata não conseguia mais sustentar a
economia da Metrópole. Assim, Portugal impunha ao Brasil uma série de
restrições comerciais a fim de conseguir vantagens. Por conta disso, os
senhores do engenho e proprietários rurais brasileiros passaram a enfrentar uma
forte crise económica.
Em contrapartida à
crise do mercado de escravos e do engenho de açúcar, surge uma rica burguesia
composta por imigrantes vindos de Portugal e que comandavam o comércio na
colônia. Esta rica burguesia dominou também o mercado de crédito e outros
contratos reais. Por conta do monopólio gerado por estes imigrantes, agravou-se
a crise dos proprietários rurais brasileiros e a hostilidade entre esses dois
grupos, que foi crescendo ao longo dos anos.
Gregório de Matos,
como filho de senhor de engenho e bacharel em Direito, encontra-se em uma
posição central neste cenário, tendo condições de pensar e analisar seu momento
histórico sob diversas perspectivas. Gregório de Matos, apesar de ter tido
diversos cargos de poder, resolve desligar-se de tudo e viver à margem da
sociedade como um poeta itinerante, percorrendo o recôncavo baiano e
frequentando festas e rodas boemias. Porém, mesmo distanciado da sociedade
hipócrita a qual ele condena, ele também se insere nela, pois Gregório ainda
depende da nobreza e vive à custa de favores deles. Ao mesmo tempo, ele encara
o papel do portador de uma "voz crítica" sobre essa mesma sociedade
na qual ele se insere.
Conforme explica José
Wisnik, o poema satírico de Gregório de Matos é marcado por essa "briga" entre uma sociedade "normal" - que é a do homem
bem nascido - e outra "absurda"
- que é composta por pessoas oportunistas, mas que estão instaurados no poder.
Porém, no caso de Gregório de Matos a "sociedade absurda" é real,
pois é a Bahia onde ele vive; e a sociedade considerada "normal", que
é a dos homens bem nascidos e cultos, é absurda perante a realidade baiana. Assim,
ambas são consideradas absurdas uma perante a outra. Esse impasse é o da
realidade histórica desse momento, coexistindo em um mesmo local duas Bahia: uma "normal", que
é vista com ar nostálgico, e outra "absurda" e amaldiçoada.
Se de um lado existe a
obra satírica de Gregório de Matos, onde ele expõe e critica sem nenhum pudor a
sociedade da época, de outro lado há também a poesia lírica produzida por ele.
Seus poemas líricos são comumente divididos em: lírico-amorosos e burlesco/eróticos. Há ainda uma vasta produção de
poemas com temática religiosa. Porém, há de se ressaltar que a ironia e crítica
social existente nos poemas satíricos não são deixados de lado em sua produção
lírica e religiosa.
Na poesia amorosa e
erótica de Gregório de Matos, o tema básico continua sendo o choque de opostos:
"espírito" e
"matéria", "ascetismo" e "sensualismo". Essa
visão dualista também aparece na figura da mulher desejada, sendo que esta
representa uma espécie de "anjo-demônio".
É interessante notar que na obra de Gregório de Matos o "outro lado"
em um par de opostos sempre irá conter um pedaço do seu par antagônico. Ou
seja, se tomarmos por exemplo a figura da mulher, quando ela aparece como um
ser angelical, ela também terá uma parte demoníaca, e vice-versa.
Dessa forma, a poesia
lírico-amorosa de Gregório de Matos é construída em torno de contradições e
pares de opostos, utilizando figuras de linguagens como o oximoro, que reforça essas contradições. Porém, deve-se ter em
mente que estas contradições não se anulam e a mensagem final que o poeta passa
é de que "diferença é identidade".
Já a poesia erótica de Gregório de Matos, na qual o poeta utiliza uma linguagem
mais direta e explícita do que na lírico-amorosa, o amor carnal aparece como
forma de libertação do corpo e, por consequência, do indivíduo também.
Por fim, tem-se a
poesia religiosa de Gregório de Matos, que também é trabalhada constantemente
através de pares de opostos. O ambiente, fortemente cristão do período barroco,
faz-se presente aqui, onde os pares antagônicos da vez é a "culpa" versus "perdão". Gregório de Matos
faz uso da poesia para se libertar e ela é a única forma possível de salvação
para o poeta. Esta salvação não se dá somente entre o poeta e Deus, mas também
perante a sociedade e si mesmo.
POEMAS REPRESENTATIVOS
"A Jesus Cristo
Nosso Senhor"
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-nos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História:
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
Este soneto é um dos
maiores representantes da poesia sacro-religiosa de Gregório de Matos. Segundo
a crítica literária, este poema foi inspirado em outros poemas de autoria
desconhecida já existentes em língua espanhola. Outra inspiração do poeta foi é
a passagem do evangelho de São Lucas, onde Jesus Cristo conta a parábola da
ovelha perdida e conclui dizendo que "há grande alegria nos céus quando um
pecador se arrepende de seus pecados e dá meia volta".
Nesse soneto, a
temática da "culpa" versus "perdão" aparece posta em xeque,
pois o poeta utiliza da linguagem para conseguir seu perdão e salvação.
Enfrentando o poder divino, o eu-lírico pede para que Deus cobre os pecados
cometidos por ele, pois quanto mais pecados ele comete, mais Deus se esforça
para perdoa-los. Assim, da mesma forma como o poder divino precisa perdoar, o
pecador precisa pecar para poder ser perdoado.
Estruturalmente, o
soneto é composto por 14 versos decassílabos com rimas no esquema ABBA, ABBA,
ABC, ABC.
"Aos Afetos e lágrimas derramadas
na ausência da dama a
quem queria bem"
Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:
Tu, que um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido.
Se és fogo, como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!
Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
Este soneto faz parte da produção
lírico-amorosa de Gregório de Matos. Estruturalmente é composto por 14 versos
decassílabos com rimas ABBA, ABBA, CDC, DCD.
O poema é composto
através de antíteses, figura de linguagem que aproxima pares de opostos, o que
é uma marca da poesia lírico-amorosa de Gregório de Matos. A primeira parte do
soneto, que é formada pelos dois quartetos, é marcada por um tom de lamentação
onde o eu-lírico vive um embate entre "paixão" (simbolizado através
de imagens como "fogo" e incêndio") e "dor"
(simbolizado por "neve" e "água", remetendo à
"lagrimas"). Na segunda parte, o eu-lírico se indaga sobre a natureza
contraditória do amor, fazendo lembrar a lírica do poeta português Camões
("Amor é fogo que arde sem se ver/É ferida que dói e não se sente").
A ideia de que "diferença é identidade" presente na poesia amorosa de
Gregório de Matos se faz presente de modo exemplar nesse soneto.
"Descreve o que
era naquele tempo a cidade da Bahia"
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem freqüente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
Este soneto satírico
é composto por versos decassílabos em esquema de rimas ABBA, ABBA, CDE, CDE.
A Bahia de outrora
aparece com um tom nostálgico, e o poeta critica a degradação moral e econômico
no qual a cidade se encontra no momento. Os ladrões e oportunistas
(comerciantes, etc.) são os detentores do poder político e econômico, enquanto
os trabalhadores honestos encontram-se na pobreza. Esse tom nostálgico e de
lamentação aparece também no famoso soneto "À cidade da Bahia", em que vemos a decadência dos engenhos de
açúcar e a ascensão de uma burguesia oportunista segundo o poeta.
À cidade da Bahia
Triste
Bahia! oh! quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mim abundante.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh! Se quisera Deus que, de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mim abundante.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh! Se quisera Deus que, de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
Fonte:
Spina, S. 1995. A poesia de Gregório de Matos. SP, Edusp.
COMENTÁRIO:
O professor Gilberto
Alves da Rocha (Giba), do Curso Apogeu de Curitiba (PR), comenta que existem dois
pontos principais na obra de Gregório de Matos que devem ser observados pelo
estudante. O primeiro é o intenso conflito de ordem espiritual, típico do
período barroco: de um lado, o Teocentrismo
(teoria segundo a qual Deus é o centro do universo) e, de outro, o Antropocentrismo (segundo esta teoria,
o homem é o centro do universo e este deve ser analisado de acordo com sua
relação com o homem). Em sua poesia religiosa, Gregório consegue filtrar com
maestria essa dualidade vivida pelo homem da época. Já o segundo ponto a ser
observado, comenta o prof. Giba, é a linguagem do autor: assim como Gregório
procura utilizar um vocabulário mais formal nos poemas líricos e religiosos,
ele utiliza gírias e até termos de baixo calão nos poemas satíricos.
Pensando-se na prova
do vestibular, o prof. Giba afirma que, por se tratar de obra poética, os
aspectos formais (rima, métrica, vocabulário) são bastante explorados pelas
bancas examinadoras e o aluno deve estar atento a questões desse tipo. Quanto
aos temas tratados por Gregório de Matos, a temática do "carpe diem"
(aproveitar o dia) está muito presente em sua poesia lírica, e é geralmente
associada à ideia da efemeridade, um dos temas mais caros aos artistas
barrocos. Por fim, o prof. Giba lembra a importância de Gregório de Matos
dentro da literatura brasileira, pois ele foi o primeiro artista brasileiro a
filtrar os desmandos políticos e o cotidiano da Bahia, Capital da Província na
época.
SOBRE GREGÓRIO DE MATOS
Gregório de Matos
Guerra nasceu no dia 7 de abril de 1633, na cidade de Salvador (BA). Filho de
um fidalgo português que se tornou senhor de engenho no Recôncavo baiano com
uma brasileira, Gregório de Matos recebeu educação formal e se formou em
Direito na Universidade de Coimbra, Portugal. Embora não se saiba muito sobre
sua vida, acredita-se que ele tenha chegado a trabalhar como juiz em Lisboa e
tenha frequentado a Corte Portuguesa, conhecendo inclusive o rei D. Pedro II.
Nesse período ele também teria se casado, mas ficou viúvo algum tempo depois e teria
entrado em decadência junto ao reinado de D. Pedro II.
De volta a Salvador,
Gregório de Matos trabalhou como Arcebispo e como tesoureiro-mór, mas foi
desligado de suas funções por volta de 1683. A certa altura, casou-se com Maria
dos Povos e vendeu as terras que havia recebido como herança. Conforme
conta-se, Gregório de Matos guardou todo o dinheiro conseguido com a venda em
um saco dentro de casa e gastava tudo sem economizar. Enquanto isso, trabalhava
também como advogado e ficou famoso por escrever argumentações judiciais na
forma de versos.
Após um tempo,
Gregório de Matos largou tudo e tornou-se cantador itinerante pelo Recôncavo
baiano, frequentando festas populares e convivendo com o povo. Nesse período
ele passa a escrever cada vez mais poesias satíricas e eróticas, o que lhe
rendeu o apelido "Boca do Inferno". Além disso, ele escreveu diversas
poesias de crítica política à corrupção e aos fidalgos locais, o que fez com
que ele fosse deportado para Angola.
Gregório de Matos só
pode voltar ao Brasil em 1695, mas com a condição de que ele abandonasse os
versos satíricos e fosse morar em Pernambuco. Nessa altura da vida, ele
volta-se para a religião e escreve diversos poemas pedindo perdão a Deus pelos
pecados que cometeu. Falece em data incerta no ano de 1696 em Recife (PE).